Vigilância em tempo próximo ao real para combater o desmatamento ilegal

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Imagine flagrar o desmatamento em tempo próximo ao real e emitir notificações aos proprietários de terras para que cessem a supressão não-autorizada da vegetação nativa. Este é o trabalho que vem sendo desenvolvido desde dezembro de 2018 pelo promotor de Justiça Cláudio Angelo Correa Gonzaga, em conjunto com o engenheiro florestal José Guilherme Roquette na prática Olhos da Mata – Coibindo o desmatamento ilegal em tempo próximo ao real. A iniciativa foi selecionada como finalista na categoria Ministério Público do 16º. Prêmio Innovare.

“O Prêmio Innovare significa muito para a nossa prática porque existem grandes interesses econômicos que são contrariados com o nosso trabalho de coibir o desmatamento ilegal. O Prêmio representa uma legitimação por parte da sociedade civil em relação a esse trabalho, permitindo-nos desenvolvê-lo com mais segurança e com mais aceitação por parte da comunidade. Na medida das nossas capacidades, estamos apenas trabalhando para atender ao preceito constitucional que garante a todos o direito ao meio-ambiente ecologicamente equilibrado”, explica o promotor Cláudio Angelo.

O trabalho desenvolvido pela Promotoria de Justiça de Itiquira, cidade localizada a cerca de 360 km de Cuiabá, funciona combinando alertas como o GLAD e o VIIRS, da plataforma Global Forest Watch. O Ministério Público atua a partir do recebimento de alertas semanais de desmatamento a partir da destruição de áreas inferiores a um décimo de um hectare (0,09 ha) e alertas de 24 a 72 horas de queimadas (com resolução espacial de 375mx375m). A ação combina a tecnologia do sensoriamento remoto, mediante o uso de alertas em tempo próximo ao real, com a tecnologia jurídica do princípio da precaução, segundo o qual a incerteza científica deve ser resolvida a favor do meio ambiente. Para parte dos juristas, o princípio é o mesmo que fundamenta a possibilidade de inversão do ônus da prova nas ações civis públicas ambientais, conforme o enunciado de súmula 618 do STJ.

Ao receber os alertas por e-mail, a partir do cadastramento do polígono de todo município na plataforma Global Forest Watch, a informação é cruzada com a base do Cadastro Ambiental Rural – CAR e outras bases de dados a que o Ministério Público possui acesso. Em seguida, o imóvel e o proprietário são identificados e a notificação segue pelos Correios, para que o responsável cesse o desmatamento não-autorizado. Nos casos de ausência de registro no CAR, pesquisas complementares no Cartório de Registro de Imóveis ou diligências pela Polícia Militar de Proteção Ambiental identificam o proprietário ou posseiro.

“O Ministério Público tem a seu favor a possibilidade de inversão do ônus da prova, quando se trata de ações de reparação da degradação ambiental. Ainda que o alerta seja apenas uma probabilidade de desmatamento, à luz do princípio da precaução, podemos agir com o mero recebimento dos alertas, encurtando o tempo de reação do Ministério Público para alguns dias após o início do fato. Normalmente essa reação levaria vários meses para acontecer”, explica o promotor. “Além disso, cria-se uma cerca eletrônica (registro do polígono do imóvel no Global Forest Watch), que é capaz de emitir alertas em caso de reiteração ou retomada do desmatamento ilegal especificamente naquele imóvel”.

Emissões de gases e aquecimento global

A notificação direta (sem prévio auto de infração) ocorre em até dois dias após o recebimento do alerta e 10 dias após o início do desmatamento ilegal. A ação é capaz de reduzir o desmatamento ilegal em imóveis com mais agilidade em relação àqueles em que o procedimento não foi adotado. Assim, previne-se a ocorrência de desmatamentos de centenas ou milhares de hectares, cuja reparação do dano é impossível.

Segundo o promotor, o desmatamento e as queimadas da Amazônia Legal são responsáveis por cerca de 35% das emissões brasileiras de gases que contribuem para o aquecimento global; somadas à atividade pecuária nas áreas desmatadas, esse percentual sobe para cerca de 49% das emissões brasileiras. Cláudio Angelo explica que a utilização de instrumentos tradicionais, como a judicialização, com a multiplicação de ações civis públicas, não conseguem acompanhar o dinamismo econômico do desmatamento ilegal, que é impulsionado pela expansão da fronteira agropecuária, pela especulação imobiliária.

“Acompanhar o ritmo do desmatamento ilegal com instrumentos tradicionais é muito difícil, inclusive em razão da sobrecarga de trabalho do Poder Judiciário. Os órgãos de fiscalização administrativos estão diretamente ligados ao Poder Executivo e podem sofrem influências do poder econômico visando abrandar ações de fiscalização, como no caso da ausência de cobrança de multas, falta de efetividade no respeito às áreas embargadas etc.”, conta.

Priorizando a esfera extrajudicial, o Ministério Público entra em contato com proprietário ou posseiro imediatamente por telefone ou mesmo pelo WhatsApp para confirmar o endereço, e já deixá-lo ciente de que a inconformidade em sua propriedade é conhecida. Em seguida, uma notificação é encaminhada pelos Correios para que ele cesse imediatamente as atividades e intervenções que não estejam devidamente autorizadas pelo órgão ambiental. Mediante a celebração de termos de ajustamento de condutas, abre-se caminho para composição do dano ambiental, com a maior parte do dano ambiental sendo paga por servidão ambiental perpétua sobre a área, evitando-se o ajuizamento de ações civis públicas desnecessárias.

“A prática mostrou-se bem-sucedida porque, uma vez que o responsável pelo desmatamento tem conhecimento de que o Ministério Público sabe o que está se passando em sua propriedade e lhe dá ciência da ilegalidade da intervenção, esse agente, na grande maioria das vezes, muda seu comportamento e a ação é estancada”, destaca o promotor. “Nos casos em que ela não é interrompida ou não conseguimos notificar o responsável, acionamos um dos órgãos de fiscalização, geralmente a Polícia Militar de Proteção Ambiental que atende um território enorme no estado de Mato Grosso. Não raro, quando a Polícia Militar chega no local, tendo em vista a imediatidade daquele alerta, encontra uma situação de flagrância que resulta na apreensão dos instrumentos do crime, como o maquinário, e na condução dos envolvidos. Mas o trabalho presencial é racionalizado apenas para esses casos extremos, pois são pouquíssimos policiais, cerca de três ou quatro, disponíveis para atender 24 municípios com grande dimensão territorial, maior que muitos estados brasileiros”, lamenta.

Finalmente, na celebração de termo de ajustamento de conduta, é priorizado o pagamento “in natura”, com a instituição de servidão ambiental em caráter definitivo sobre as áreas desmatadas, o que também é viável em razão do tamanho reduzido dos desmatamentos.

Mesmo notificados, alguns proprietários estão satisfeitos

Os primeiros testes começaram com o uso dos alertas VIIRs (NASA) da plataforma Global Forest Watch, um tipo de radar que identifica áreas com queimadas. No entanto, mesmo sabendo-se com precisão o local exato e data das queimadas em áreas de vegetação nativa, a falta de estrutura dos órgãos de fiscalização ambiental para comparecer ao local do crime era um gargalo. Ciente desta dificuldade, a Promotoria implementou acessos às bases do Cadastro Ambiental Rural (CAR) e passou a identificar as propriedades pelo Sistema Infoseg, notificando os responsáveis pelos Correios.

“A maior dificuldade foi encaixar as peças – combinar o sensoriamento remoto e uma atuação extrajudicial precaucionária que constituem a prática, criando um procedimento operacional padrão – POP. A implementação, no entanto, é simples. As ferramentas são avançadas, utilizam inteligência artificial no reconhecimento e processamento de imagens de satélite, mas são todas gratuitas e de fácil utilização, como o Global Forest Watch e as imagens de satélite Sentinel-2 do Projeto Corpernicus, da União Europeia. Tivemos uma dificuldade inicial em razão da acurácia dos alertas nas áreas inundáveis do Pantanal ser menor, o que nos levou a criar um passo a mais em nosso procedimento para a conferência visual dos alertas de desmatamento. A maior dificuldade é administrar o número de procedimentos extrajudiciais para promotores de Justiça com atribuição plena, e não apenas cível ou ambiental. No entanto, em pouco tempo, o número de ocorrências tende a reduzir-se”, conta Cláudio Angelo.

Leonardo Brezolin, proprietário da Fazenda Vale dos Buritis, recebeu a visita da fiscalização por conta do trabalho do Ministério Público e considera a iniciativa importante para esclarecer os proprietários: “Recebemos o alerta de que o desmatamento era ilegal e no mesmo momento paramos de avançar. Buscamos informações no Ministério Público e fizemos um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC). Entramos em um consenso em relação à área de servidão, que deveria ser preservada e tudo foi resolvido rapidamente. Se não fosse assim, o avanço do desmatamento poderia até inviabilizar esse acordo”, conta.

Outro proprietário satisfeito com o trabalho do Ministério Público mesmo após a notificação e apreensão de maquinários é Guilherme Bunharena, da Fazenda Nossa Senhora Aparecida do Norte. Para ele, a área de servidão ambiental perpétua como objeto do termo de ajustamento de conduta é uma vantagem que pode ser utilizada, inclusive, economicamente.

“Além de preservar os bens naturais que você tem na propriedade, a servidão ambiental pode gerar créditos de carbono. Nós, que somos exportadores, utilizamos essa área de servidão como uma demonstração de que estamos preocupados com a preservação do meio ambiente. Os estrangeiros nos tratam com um outro olhar, entendendo e valorizando o nosso esforço em preservar o meio ambiente.”

Queimadas ameaçam florestas em todo o país

Dados do sistema de monitoramento Prodes, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostram que, entre agosto de 2018 e julho de 2019, o Brasil bateu o recorde de desmatamento na Amazônia nesta década. Foram destruídos 9.762 km quadrados no período, revelando um aumento de 29,5% em comparação ao mesmo período do ano anterior, quando o mesmo órgão registrou a área desmatada em 7.536 km quadrados. O Prodes realiza o monitoramento por satélite do desmatamento por corte raso na Amazônia Legal e produz, desde 1988, taxas oficiais que são usadas pelo governo brasileiro para o estabelecimento de políticas públicas na área. Ele é conhecido por oferecer o dado mais preciso, consolidado e com nível de segurança superior a 95%.

De acordo com matéria do G1, o Prodes considera o intervalo entre agosto e julho porque o período abrange tanto as épocas de chuva quanto as de seca na região amazônica, levando em conta os momentos mais cruciais no ciclo de desmatamento e identificando influências do clima.

Pará, Rondônia, Mato Grosso e Amazonas foram responsáveis por 84% do total desmatado no período considerado no estudo: 8.213 km quadrados. Em um podcast o repórter especializado em ciência Philippe Watanabe compara o total de floresta desmatada registrada pelo Prodes (9.762 km): seria o equivalente a uma área de 6,5 vezes o tamanho da cidade de São Paulo ou mais de nove vezes o tamanho de Belém do Pará.

Sobre o Prêmio Innovare

Desde sua criação, em 2004, o Prêmio Innovare já recebeu mais de 6.900 trabalhos e premiou, homenageou e destacou 213 iniciativas que têm como objetivo principal aprimorar o trabalho da Justiça em todo o país, tornando-a mais rápida, eficiente e acessível a toda a população. No site do Innovare (www.premioinnovare.com.br) é possível conhecer todas gratuitamente, utilizando a ferramenta de busca. A consulta pode ser feita por palavra-chave, edição, categoria, estado de origem e a situação da prática.

O Prêmio Innovare é uma iniciativa do Instituto Innovare, com a parceria institucional do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp), o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos (Anadep),  Associação dos Juízes Federais (Ajufe), Conselho Federal da OAB, Associação Nacional dos Procuradores de República (ANPR), Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) e do Ministério da Justiça e Segurança Pública, por meio da Secretaria Nacional de Justiça, com o apoio do Grupo Globo.

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