Para minha grata surpresa, em um desses presentes inesperados que a vida nos traz, recebi a honrosa função de atuar como Primeira-dama da cidade de Várzea Grande, quando meu marido, Kalil Baracat, foi eleito prefeito da segunda maior cidade do estado.
Embora separadas pelo rio, Cuiabá e Várzea Grande são cidades irmãs. Mas nem por isso devem ser confundidas ou fundidas em suas produções artísticas e culturais. Especialmente porque Várzea Grande possui um rico legado identitário próprio que se manifesta numa intensa produção de artesanato, que hoje, merecidamente, começa a se espalhar pelo mundo, chegando recentemente até a Casa Real da Inglaterra, por intermédio de nossa estimada Primeira-dama do Estado, Virgínia Mendes.
E foi justamente por sugestão da atuante Primeira-dama do Estado, antiga admiradora e incentivadora do artesanato local, que fui conhecer de perto a pacata comunidade de Limpo Grande, verdadeiro berço histórico das redes que embalaram a minha doce infância e que erroneamente são conhecidas por muitos como “redes cuiabanas”.
Em abalizada pesquisa intitulada “Redes de Dormir de Limpo Grande”, coordenada e realizada por Elizete Ignácio, Lucas Albuquerque de Oliveira e Valéria Nogueira Rodrigues, posteriormente publicada pelo Ministério da Cultura, em conjunto com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, é feito um precioso resgate histórico quanto ao surgimento das redes, detalhando que a provável origem do tear vertical – e das redes nele tecidas – remonta aos indígenas que viveram no século XIX no território que hoje compõe o município de Várzea Grande.
Nessa mesma linha, o estudioso Ricardo Santiago Santos afirma, em artigo publicado na obra “Artesanato de Mato Grosso: saberes pelas mãos do tempo”, denominado “O incessante batuque das linhas no tear – as míticas redeiras de Limpo Grande”, que foram índias da etnia Guató que repassaram adiante sua expertise, inicialmente às escravas e depois às demais mulheres da comunidade de Limpo Grande.
E desde então essa técnica centenária e única, cujo lavrado pode ser visto de ambos os lados, pois não tem avesso – ponto somente encontrado em VG –, vem sendo repassada de geração para geração, somente não desaparecendo diante dos desafios do mundo moderno graças ao empenho e dedicação dessas admiráveis mulheres várzea-grandenses.
Sim, apenas mulheres manuseiam os pesados teares manuais, cujo processo demanda de um a três meses para confeccionar uma única peça. E cada rede que nasce do tear é única, uma verdadeira obra de arte tecida com o coração e muito amor. Do tear saem coloridas redes bordadas com animais ou flores do nosso Pantanal, ou ainda com símbolos da cultura local, como a viola de cocho.
E justamente por enxergar esse precioso trabalho como obra de arte e as redeiras como verdadeiras artistas que são, é que um grupo de voluntários, por meio de ações coordenadas do GAAT – Gabinete de Apoio às Ações Transformadoras – e da Secretaria Municipal de Educação, Cultura, Esporte e Lazer de Várzea Grande, envidou esforços para auxiliar a comunidade a organizar e fundar a ‘TECE ART’, associação das redeiras de Limpo Grande, cadastrando cada uma delas como artesã profissional.
Além disso, cada artesã passará a bordar sua assinatura na peça produzida, atestando sua autenticidade e a produção genuinamente manual. No já citado artigo publicado por Ricardo Santiago Santos, o autor estima que as redes várzea-grandenses, oriundas do tear vertical, são as únicas produzidas de forma cem por cento artesanais, hoje, no Brasil.
Isso implica dizer que as redes comumente ofertadas para comércio são produzidas em larga escala, de forma industrial, e nem de longe se assemelham em beleza e resistência às redes várzea-grandenses feitas à mão. E por justiça a esse resgate histórico dos primórdios da tecelagem das redes, e especialmente em honra a todas as valorosas artistas redeiras de Limpo Grande, é que de uma vez por todas devemos registrar que as redes não são cuiabanas, mas sim várzea-grandenses.
KIKA DORILÊO atualmente exerce a função de Primeira-dama de Várzea Grande, atua como voluntária no GAAT – Gabinete de Apoio às Ações Transformadoras – e é Promotora de Justiça do Estado de Mato Grosso.