Por Bruno Lima Barcellos
O Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA – imprimiu uma série de direitos e garantias, bem como revestiu a atuação do Estado com protagonismo, frente a Políticas Públicas (inclusive na área da segurança pública), no que tange à proteção que se deve estabelecer a crianças e adolescentes. Não por outro motivo, já expressa no seu artigo 1º, que tais infantes receberão proteção integral.
Erigido a Estatuto, a lei 8.069/90 elenca uma série de direitos aos infantes, além de regular guarda, adoção, criação do Conselho Tutelar, das Varas Especializadas da Infância, atribuição do Delegado de Polícia e do órgão do Ministério Público, garantir a defesa judicial e administrativa pela Defensoria Pública, criação de infrações penais específicas e que guardam relação com a proteção que se dá à criança e ao adolescente, entre outras. Enfim, buscou-se tratar de uma série de matérias (e por isso mesmo Estatuto), todas relacionadas a este público específico, e, sempre, com o fito de tutelar os seus interesses, como titulares de direito que são, materializando preceitos constitucionais.
Lembremo-nos que nem sempre foi assim, visto que crianças e adolescentes eram tratados, perante a própria legislação como objetos de direito e não titulares. E, foi só com a Constituição Federal de 1988, que o tratamento conferido a este público se transformou, e muito, consagrando uma série de conquistas da sociedade brasileira e internacional na tutela dos direitos do público infanto-juvenil, transformando-os em titulares de direito.
Mencione-se, desde já, que criança é a pessoa de até 12 anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre 12 e 18 anos de idade (artigo 2º do ECA), além do que revela o ECA que toda conduta descrita como crime ou contravenção penal, desde que praticado por criança/adolescente deve ser visto como ato infracional (art. 103 do ECA).
Assim, nessa toada é que a atuação da Autoridade Policial, frente ao cometimento de atos infracionais, com o esclarecimento de sua autoria e materialidade, também deve ser pautada, como uma garantia da novel e atual ordem constitucional-democrática, em que vive o Brasil. E, sua expressão mais clara e objetiva é no que se refere a apreensão (em flagrante) do adolescente, pelo cometimento de ato infracional, uma vez que o mesmo deverá ser encaminhado, primeiro e inexoravelmente, ao Delegado de Polícia com atribuições para tanto, para em se verificando as hipóteses do art. 302 e ss do CPP (as mesmas hipóteses de situações flagranciais para os imputáveis) determinar a lavratura do Auto de Apreensão em Flagrante (ou Boletim de Ocorrência Circunstanciado), a depender do ato cometido e, assim, seguir os ditames estabelecidos em lei. Mais à frente estabeleceremos as diferenças.
Sendo, sem dúvida alguma, reconhecida como uma das conquistas democráticas, com a atual Constituição Federal e, principalmente, do público, agora, de titulares de direito, formados por crianças e adolescentes que cabe ao Delegado de Polícia tal atribuição com exclusividade.
Antes de mais, aqui já se faz uma observação, ao se perquirir a possibilidade de uma criança cometer ato infracional. Porquanto, de acordo com o E.C.A. os indivíduos menores de 12 anos cometem sim, ato infracional, contudo não será possível a lavratura de qualquer procedimento de apuração deste e, muito menos, ser-lhe-á aplicada qualquer medida socioeducativa, portanto referido infante NÃO deve ser conduzido à presença da Autoridade Policial para a lavratura de procedimento flagrancial, ou mesmo confecção de Boletim de Ocorrência. A solução prática, a ser adotada, para este caso específico é a sua apresentação ao órgão do Conselho Tutelar municipal, para aplicação de medida protetiva. Tema este que será mais a frente abordado.
Agora, porque o Estatuto determina que a apresentação do adolescente seja feita ao Delegado de Polícia, consoante se mencionou acima? Por uma questão de grande importância ao nosso atual modelo constitucional, ou seja, o Estado deve zelar peloatendimento aos direitos do adolescente (in casu, o que tenha praticado ato infracional), e para tanto coloca o Delegado de Polícia, como autoridade estatal, como o primeiro a receber o adolescente, que esteja nestas circunstâncias, para assim promover a devida apuração do ato cometido (com a lavratura do competente Auto de Apreensão em Flagrante ou Boletim de Ocorrência Circunstanciado), sem descurar de seus direitos constitucionais, ou melhor garantindo-lhes sua aplicação. Bem como, em havendo vítima ser-lhe deferido atendimento mais adequado, seja com a entrega de bens que lhe tenham sido subtraídos, seja requisitando uma perícia e outras diligências que se fizerem imprescindíveis à elucidação dos fatos.
Em verdade, a Autoridade Policial promoverá um filtro legal (inclusive contra possíveis abusos cometidos, em face do menor) e verificará se o infante encontra-se em situação flagrancial, e, se assim encontrar a resposta positiva, determinará a lavratura do ato correspondente, além de garantir-lhe a prioridade em seu atendimento, e providenciará sua pronta entrega ao seu representante legal (mediante termo próprio), ou mesmo (em caso de não liberação) à entidade de atendimento para adolescentes (nunca para o sistema prisional, onde estejam maiores e imputáveis cumprindo pena), para apresentação, logo em seguida, ao órgão do parquet estadual.
Saliente-se que em não havendo a referida entidade de atendimento, no município, deverá a própria Polícia Civil fazer as vezes desta entidade, local em que o adolescente deverá permanecer apreendido, pelo prazo improrrogável de até 05 dias. Isso é o que revela o art. 175, §§ 1º e 2º c/c art. 185, §2º, ambos do ECA.
É imperioso anotar, ademais, que se o Delegado de Polícia não comunicar a apreensão em flagrante ou mesmo a por força de ordem judicial à Autoridade Judiciária competente e à família do adolescente, tenha cometido o delito previsto no art. 231 do ECA; observa-se, com isso, a aplicação do sistema de freios e contrapesos, cumprindo o estabelecido no art. 107 do ECA.
A leitura mais acurada do art. 227 da Constituição Federal, permite-nos entender que quando se quer dar tratamento ao adolescente com ABSOLUTA PRIORIDADE, frente à prática do ato infracional, que também está em jogo a possibilidade de cerceamento de sua liberdade de locomoção, deve a Autoridade Policial interferir, garantindo-lhe direitos fundamentais, seja como filtro diante de possíveis excessos, seja categorizando sua conduta para a lavratura ou não de procedimento de apuração de ato infracional, bem como determinando sua liberação ou não, diante do caso em concreto. Veja o que prescreve o art. 227 da Carta Magna:
“Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”
Assim, quando se está diante do cometimento do ato infracional praticado por adolescente, este indivíduo deverá ser apresentado imediatamente ao Delegado de Polícia, para que siga o previsto em lei, e se possa apurar devidamente a prática do comportamento delinquente, em atenção ao princípio da Prioridade Absoluta. Insisto em dizer que não será outra Autoridade Estatal, que realizará a análise dos fatos, e sim, e apenas, o Delegado de Polícia. Este é o modelo Constitucional-Legal, e que respeita a aplicação concreta do que deve ser entendido como Prioridade Absoluta.
- A PRÁTICA DO ATO INFRACIONAL POR CRIANÇA. UMA VISÃO MAIS ATUAL E FUNDAMENTADA COM O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E SEUS CONSECTÁRIOS LEGAIS.
Feitas essas considerações introdutórias, e que inspiram o leitor a dar continuidade à leitura do presente artigo, é que proponho uma análise mais detida de tais procedimentos de apuração, fazendo diferenças importantes e que não podem passar ao largo de uma apreciação por parte deste autor, que como Delegado de Polícia deve lavrar este ou aquele procedimento de apuração, com todos os consectários legais, a depender do conduzido, seja pela sua idade, seja pelo ato infracional cometido.
Assim, desde logo, chamo a atenção do leitor, e demonstrando a importância do tema, para a análise no que toca a prática de ato infracional por criança (ou seja, os menores de 12 anos incompletos), tendo, inclusive, tal matéria sido questionada perante a Suprema Corte, que se posicionou, recentemente, pela constitucionalidade dos artigos que lhe são afetos, e de forma assertiva consignou que:
“Esclareceu que o tratamento adequado para a criança infratora é um desafio para a sociedade. A decisão do legislador de não aplicar medidas mais severas está em harmonia com a percepção de que a criança é um ser em desenvolvimento que precisa, acima de tudo, de proteção e educação, ou seja, trata-se de uma distinção compatível com a condição de maior vulnerabilidade e de pessoa em desenvolvimento, quando comparada a adolescentes e pessoas adultas. O legislador dispõe de considerável margem de discricionariedade para definir o tratamento adequado à criança em situação de risco criada por seu próprio comportamento. A opção pela exclusividade das medidas protetivas não é desproporcional; ao contrário, alinha-se com as normas constitucionais e internacionais. A atuação do conselho tutelar nesses casos de atos infracionais praticados por crianças não representa qualquer ofensa à Constituição nem viola a garantia da inafastabilidade da jurisdição. Nesse sentido, cumpre ressaltar que o conselho tutelar é um colegiado de leigos, assim como o tribunal do júri, previsto no inciso XXXVIII do art. 5º da CF. Trata-se de órgão que permite a participação direta da sociedade na implementação das políticas públicas definidas no art. 227 da CF, voltadas para a promoção e proteção da infância, em consonância com as mais atuais teorias de justiça, democracia e participação popular direta. A atuação do conselho tutelar não exclui a apreciação de eventuais demandas ou lides pelo Poder Judiciário, inexistindo, portanto, a alegada ofensa ao art. 5º, XXXV, da CF. (grifo nosso)
Nota-se, que ficou assentado perante a Suprema Corte que criança, malgrado ser-lhe possível imputar a prática de ato infracional, não lhe será aplicada qualquer medida socioeducativa, mas tão somente medidas protetivas, pelo órgão do Conselho Tutelar, com atribuições para tanto, na forma do Estatuto. Portanto, não haverá um procedimento de apuração de ato infracional, nem mesmo um processo judicial para tal fim.
Isto significa dizer que não caberá ao Delegado de Polícia adotar qualquer medida de apuração do ato infracional (lavratura de AAF ou BOC), quando praticado por criança, mesmo diante de uma hipótese em que o comportamento deste infante tenha se revelado com grave ameaça a pessoa, ou mesmo proceder a relatório de investigação (RI), em caso de não ter havido flagrante, sob pena de incorrer em abuso de autoridade ou crime próprio do ECA, previsto no art. 230.
Como dito alhures, a criança deverá ser, desde logo, apresentada ao órgão do Conselho Tutelar para a aplicação da medida protetiva, mais adequada ao caso em concreto, com a observância dos arts. 99, caput e art. 100, caput e seu parágrafo único e art. 136, I todos do ECA.
A Autoridade Policial deverá invocar para a não lavratura de AAF ou BOC de criança e seu encaminhamento para apresentação ao Conselho Tutelar, os seguintes dispositivos legais, entre outros que considerar pertinentes: Art. 98, III; art. 101, caput; art. 105, caput; art. 106, caput e seu parágrafo único; art. 107, caput; art. 110, caput; art. 111, caput; art. 112, caput; art. 136 e ss todos do ECA e o art. 49 e ss da lei 12.594-2012;
Há quem diga que poderia ser confeccionado um Boletim de Ocorrência, para fins de se identificar o indivíduo, no caso a criança, mas tal postura não encontra guarida no hodierno ordenamento jurídico, além do que deve ser observado que se ao adolescente infrator, que se tenha atribuída a prática de ato infracional não lhe será exigido, muito menos para criança, que sequer será lavrado qualquer procedimento de apuração, desde que tenha sua identificação civil, na forma do art. 109 do ECA.
Não se deve, todavia, descartar a possibilidade de que a criança esteja envolvida com outras pessoas, sejam adolescentes ou mesmo maiores e imputáveis, para a prática de atos infracionais/delitos, o que demandará, aí sim, uma investigação policial, contudo o alvo de tal desiderato investigativo não será absolutamente a criança, devendo no máximo ser aventada a hipótese de que maneira se deu sua participação no evento criminoso. Logicamente, que também caberá à Polícia Civil a apreensão de armas de fogo ou drogas, entre outros instrumentos do delito, que possam ser encontradas em poder da criança, e que possam ser utilizadas em favor de uma futura investigação policial.
Ressalte-se que o doutrinador e Delegado de Polícia do Paraná, Henrique Hoffmann, também chega a esta conclusão em artigo publicado no site conjur, quando então se expressa, com relação aos adolescentes apreendidos em situação de flagrante de ato infracional, contudo não permanecem internados provisoriamente, e devem ser entregues ao seu responsável legal, que se nega a comparecer ou mesmo não é encontrado pela Polícia Civil, cabendo ao órgão do Conselho Tutelar o papel de promover a retirada deste adolescente da Delegacia de Polícia e o encaminhar aos seus pais (aplicação do art. 136, I do ECA).
Acompanhe um trecho do texto escrito pelo professor/delegado de polícia, no que se refere ao ponto que ora me dedico, ou seja, a prática do ato infracional pela criança e seus efeitos legais, onde traz o mesmo entendimento esposado neste artigo, e defendido pelo Supremo Tribunal Federal:
“A criança que pratica ato infracional se sujeita às medidas de proteção (artigo 104 do ECA), que englobam, por exemplo, encaminhamento aos pais ou responsável, inclusão em programas de proteção, tratamento médico e acolhimento institucional ou familiar (artigo 101 do ECA). Se surpreendida em flagrante, não deve ser conduzida à Delegacia de Polícia, mas atendida pelo Conselho Tutelar (artigo 136, I do ECA), em regra, exceto ante a ausência de estrutura do órgão ouinsuportável risco decorrente da prática de ato infracional de excepcional gravidade.”
III. AS NUANCES PARA A LAVRATURA DE AAF, BOC OU APENAS RELATÓRIO POLICIAL (POSSÍVEIS INSTRUMENTOS DE APURAÇÃO DE ATO INFRACIONAL). ENTENDA DE UMA VEZ!!!
III.I. ADOLESCENTE INFRATOR E AS FORMAS DE APURAÇÃO DO ATO INFRACIONAL.
Bem, superadas questões conceituais e introdutórias que não suscitam uma maior divergência, passo a análise da apreensão do adolescente, quando em flagrante de ato infracional, que demandam uma análise mais atenta do intérprete/aplicador do direito, devido a compreensões divergentes que serão tratadas em diante.
Desde logo, deve ser salientado, que em caso de apreensão de adolescente em situação de flagrante de ato infracional, o mesmo deverá ser apresentado à Autoridade Policial, como já mencionado acima. Ao Delegado de Polícia, então, e na forma do art. 173, caput e seu parágrafo único abrem-se duas possiblidades de lavratura, uma primeira análise que deverá ser realizada é se o ato infracional foi cometido com violência ou grave ameaça a pessoa ou não. Em sendo positiva a resposta, a única alternativa a ser lavrada será o A.A.F. – AUTO DE APREENSÃO EM FLAGRANTE.
Contudo, se o ato infracional foi praticado sem violência ou grave ameaça a pessoa, o AAF poderá ser convertido pelo Delegado de Polícia em algo mais simples, sendo determinado, portanto a lavratura de B.O.C. -Boletim de Ocorrência Circunstanciado.
Portanto, essas duas são as formas de se materializar a apreensão em flagrante de ato infracional, ou seja, a que o adolescente infrator cometeu com violência ou grave ameaça à pessoa e a que cometeu sem, o que gera obrigatoriamente duas formas de apuração, o AAF e o BOC, respectivamente.
Contudo, chama-se a atenção para um esclarecimento importante, que deve ser feito no momento da definição do procedimento a ser adotado pelo Delegado de Polícia, quando diante do ato infracional sem violência ou grave ameaça à pessoa. Frise-se, que é possível lavrar AAF em casos de ato infracional sem violência ou grave ameaça, desde que o Delegado de Polícia, diante do caso em concreto, perceba que aquele seja a melhor opção, dentro de um juízo de discricionariedade, visto que o próprio Estatuto menorista afirma que o Delegado de Polícia “poderá” lavrar o B.O.C.
Assim, deverá levar em conta o resultado que se espera da apuração, e observar o próprio atuar do adolescente, além de suas condutas pretéritas (caso de reincidência). Assim, acompanhando a doutrina de Ishida, quando esclarece que “convém ressaltar que nada impede que a autoridade policial determine o auto de apreensão. Exemplificando: um adolescente infrator comete vários furtos, sendo multirreincidente. O mesmo se o adolescente realiza reiteradamente o tráfico de entorpecentes”.
Na primeira hipótese, que está consagrada no art. 173, caput do ECA, (ou seja, AAF) o Delegado de Polícia após determinar a lavratura do auto de apreensão em flagrante, deverá proceder com as oitivas das testemunhas e do próprio adolescente, além de apreender o produto e os instrumentos da infração, bem como requisitar os exames ou perícias necessários à comprovação da materialidade e autoria da infração. Em sendo caso de BOC, procedimento mais célere, sem tantas formalidades como o AAF, todavia sem descurar dos elementos mínimos a comprovar a materialidade delitiva e a autoria do ato infracional.
Tal posicionamento também foi revelado pelos ensinamentos dos doutrinadores e Delegados de Polícia de Goiás, Drs. Adriano Sousa Costa e Laudelina Inácio da Silva, que se posicionam objetivamente acerca do assunto em voga. Assim, os nobres colegas lecionam que:
“(…) De fato, somente três peças de investigação podem ser confeccionadas em relação aos adolescentes: o Auto de Apreensão em Flagrante (AAF), o Boletim de Ocorrência Circunstanciado (BOC) e o Relatório Policial (RP). (…)
O primeiro ponto a ser sobrelevado é que, no caso da apreensão em flagrante de menor infrator, abrem-se somente duas dessas possiblidades: a lavratura do Auto de Apreensão em Flagrante (AAF) e o Boletim de Ocorrência Circunstanciado (BOC). No caso de investigação (que não derive de captura em flagrante), só há a possibilidade de confecção de Relatório Policial (RP).
(…)
Algumas Autoridades Policiais costumam confundir o fato de o ato infracional ter sido materializado em um AAF (ato praticado mediante violência ou grave ameaça contra a pessoa) com a necessidade de o adolescente ter que ficar apreendido cautelarmente, isto é, impedir que ele seja entregue a seus familiares ou aos seus responsáveis legais, após a lavratura do procedimento. Aqui é que está o erro!
Na verdade, a escolha do procedimento a ser lavrado tem os seus vetores (ato infracional cometido com violência ou grave ameaça contra pessoa); já a possibilidade de liberação imediata do adolescente aos seus responsáveis possui outros requisitos, quais sejam: manutenção da ordem pública e garantia da segurança pessoal do menor, quando a gravidade do ato infracional e sua repercussão social o recomendarem.”
Então, se por um lado, tem-se estabelecida a forma da apuração do ato infracional, de outro, deverá o Delegado de Polícia passar à análise (segunda, portanto) da necessidade de manutenção da internação provisória do adolescente (ou não) e, posterior, encaminhamento do mesmo ao órgão do parquet estadual (salvo se houver entidade de atendimento, que será incumbida de tal mister), o que deverá fazer fundamentado no art. 174, in fine, do ECA, combinado com art. 108, parágrafo único, veja ippsis litteris os artigos em voga, que trago a colação pela importância de sua análise:
Art. 174. Comparecendo qualquer dos pais ou responsável, o adolescente será prontamente liberado pela autoridade policial, sob termo de compromisso e responsabilidade de sua apresentação ao representante do Ministério Público, no mesmo dia ou, sendo impossível, no primeiro dia útil imediato, exceto quando, pela gravidade do ato infracional e sua repercussão social, deva o adolescente permanecer sob internação para garantia de sua segurança pessoal ou manutenção da ordem pública.
Art. 108. A internação, antes da sentença, pode ser determinada pelo prazo máximo de quarenta e cinco dias.Parágrafo único. A decisão deverá ser fundamentada e basear-se em indícios suficientes de autoria e materialidade, demonstrada a necessidade imperiosa da medida.
Nota-se, que não é apenas porque o ato infracional foi cometido com violência ou grave ameaça a pessoa ou por ter sido considerado grave que o adolescente permanecerá internado provisoriamente (para ser apresentado ao órgão do Ministério Público), vez que são coisas distintas.
Veja bem, a regra será sempre a liberação imediata do adolescente, tanto para AAF, quanto para o BOC, ressalvado os casos previstos em lei (conforme arts. 107 par. único e 108, par. único, do ECA). Também deverá ser observado o art. 100, par. único e seguintes do ECA que trata de princípios aplicáveis aos adolescentes, no que tange às possíveis medidas aplicadas.
Desta feita, é possível afirmar que pelo simples fato de ter sido lavrado AAF, não se pode conduzir à conclusão que o adolescente deva ficar internado provisoriamente, devendo restar devidamente demonstrada que se trata de medida imperiosa, guardando relação com a manutenção da ordem pública e garantia da segurança pessoal do menor, cumulados com a gravidade do ato infracional e sua repercussão social.
Destarte, se não estiverem presentes tais elementos ensejadores, o Delegado de Polícia deverá promover a liberação do adolescente ao seu representante legal, mesmo em se tratando de AAF, sob pena de incorrer em abuso de autoridade, art. 9ª da lei 13.869-2019, visto que estaria decretando a internação provisória do adolescente, a contrário sensu, sendo que o mesmo tem direito à liberdade.
Corroborando tal posicionamento é que o art. 176 do ECA prescreve que: “Sendo o adolescente liberado, a autoridade policial encaminhará imediatamente ao representante do Ministério Público cópia do auto de apreensão ou boletim de ocorrência.” (grifo nosso)
Saliente-se, ademais, que a Autoridade Policial poderia decretar a internação provisória do adolescente, em se tratando de lavratura de B.O.C. (conquanto não proceda à liberação do adolescente infrator), quando presentes a gravidade do ato infracional (gravidade concreta, diga-se de passagem! Como exemplo a quantidade da droga apreendida e o envolvimento real do adolescente com o comércio da substância entorpecente), sua repercussão social, bem como para se assegurar a segurança pessoal do mesmo ou a ordem pública (art. 108, parágrafo único e 174 in fine do ECA). Reiterando o exemplo, acima mencionado, e trazido pela doutrina majoritária seria o tráfico de drogas, pois que, ato infracional cometido sem violência ou grave ameaça a pessoa, mas tido como grave (veja a sanção, preceito secundário do tipo penal, que é de reclusão, além de ser equiparado a hediondo).
Ou seja, amparado e arrimado em doutrina especializada:
“a impossibilidade de liberação será consequência da aferição relativa à natureza do ato infracional e da sua repercussão social, observando-se que, diferentemente do que dispõe o art. 173, o ECA não condicionou, no art. 174, a caracterização da gravidade da conduta do adolescente ao fato de que esta tenha sido cometida com violência ou grave ameaça à pessoa, o que leva à conclusão de que é preciso colher no âmbito criminal elementos para a definição daquilo que o legislador pretendeu considerar como de natureza grave, para os efeitos do mencionado art. 174 do ECA.
Assim, é a lição de Jurandir Norberto Marçura: ‘considerando que o legislador valeu-se dos conceitos de crime e contravenção penal para definir o ato infracional (art. 103), devemos buscar na lei penal o balizamento necessário para a conceituação de ato infracional grave. Nela, os crimes considerados graves são apenados com reclusão; os crimes leves e as contravenções penais, com detenção, prisão simples e/ou multa. Por conseguinte, entende-se por grave o ato infracional a que a lei penal comina pena de reclusão.’”
Assim, a gravidade do ato infracional é mais um elemento a ser analisado para a decretação da manutenção da internação provisória, que deverá ser somado à repercussão social do ato, além da garantia da segurança pessoal (do adolescente) ou da ordem pública. Sendo este o pensamento de Bianca Mota de Moraes e Helane Vieira Ramos, quando afirmam que:
“Em uma interpretação sistemática, concatenada com o art. 174, última parte, do ECA, emerge a necessidade de que neste ato observe, ainda, a autoridade judiciária, a gravidade do fato e sua repercussão social, velando pela garantia da segurança pessoal do adolescente ou pela manutenção da ordem pública.”
Nessa toada perscruta-se, o que seria risco à segurança do adolescente?
Bem, como o ECA pauta sua política de tratamento fundamentado na proteção integral ao adolescente, deve ser observado o melhor interesse ao infante, ou seja, se se observar que o mesmo retornando ao convívio normal de sua vida poderá continuar a praticar atos infracionais, seja pelo seu envolvimento com outros traficantes, a título deexemplo, é possível dizer que sim, sua segurança pessoal está violada. Ensejando motivo para a manutenção de sua apreensão e encaminhamento ao órgão do Ministério Público, claro se presentes os demais requisitos ensejadores da manutenção da apreensão provisória.
Mais um esclarecimento, acerca da gravidade do ato infracional, é que os motivos ensejadores da medida de internação (medida socioeducativa) previstos no art. 122 do ECA, não se confundem com os motivos para a decretação da internação provisória (cautelaridade do procedimento), do art. 174, in fine do ECA. Consoante doutrina:
“Deve-se aqui salientar que nessa fase preliminar, gravidade do delito não se confunde com o rol do art. 122 do ECA que trata da aplicação de medida socioeducativa. Nesse sentido, o Des. Decano Alves Bevilaqua, proferida em sede de liminar no HC 2000310-21.2013, TJSP, decisão de 26.04.2013: ‘… a custódia provisória constitui medida cautelar que não se vincula às hipóteses do artigo 122 da lei 8.069-90, dependendo apenas da sua constatação imperiosa.’ Uma coisa é o regramento para aplicação de medida cautelar. Outra coisa são os parâmetros para imposição de sanção (medida socioeducativa), não sendo válidas as considerações para admissão da medida cautelar através das regras do art. 122 com fez o STJ: HC 61.226/SP, HC 65.715/SP, HC 62.001/SP.”
Verifica-se, data vênia, que o próprio STJ e alguns Tribunais equivocam-se ao invocar para aplicação da internação provisória os motivos ensejadores da medida socioeducativa de internação (definitiva), prevista no art. 122 e ss do ECA. De acordo, ainda mais uma vez, com Válter Kenji Ishida:
“A decretação da internação provisória não se sujeita às limitações do rol exaustivo do art. 122 do ECA, consoante entendimento dos tribunais superiores. O regramento dessa decretação deve-se basear sim, no estipulado pelo art. 174 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Trata-se de um controle judicial sobre o ato administrativo da autoridade policial à semelhança da decisão de conversão da prisão em flagrante em preventiva (art. 310, II, do CPP), mas sem a limitação do art. 122 da lei menorista. Tanto é que, topograficamente, as duas matérias foram inseridas tecnicamente em capítulos distintos. A medida socioeducativa da internação foi colocada no Capítulo IV do Título III que cuida do direito material (prática do ato infracional), ao passo que a medida cautelar de internação provisória se coloca acertadamente na matéria procedimental (Seção V do Capítulo III do Título VI).
Conclui-se, portanto, que o ato infracional equiparado ao tráfico de entorpecentes não se submete, em se tratando de internação provisória, à limitação do rol do art. 122 do Estatuto da Criança e do Adolescente.”
Veja decisão do TJDF, onde faz uma mistura indisfarçável dos institutos da aplicação da medida de Internação definitiva do art. 122 do ECA (como medida socioeducativa aplicada) e a internação provisória do art. 108 e 174, in fine, do ECA:
“1. Conforme preceituam os artigos 108 e 174 do Estatuto da Criança e do Adolescente, a decisão de internação provisória deve demonstrar a necessidade imperiosa da medida para certificar a segurança pessoal do adolescente e/ou a manutenção da garantia da ordem pública. (…). 3. A internação provisória é medida excepcional e apenas sejustifica quando cabe medida socioeducativa definitiva de internação, segundo o princípio da homogeneidade (…). 4. Irreparável a negativa de internação provisória fundamentada na ausência de violência ou grave ameaça no ato infracional (inciso I), além disso, ausente risco à segurança pessoal do adolescente ou à garantia da ordem pública (…), revelando-se desnecessária e desproporcional a aplicação da medida à hipótese. ”
(Acórdão 1114175, 20180020033469AGI, Relator: SILVANIO BARBOSA DOS SANTOS, 2ª Turma Criminal, data de julgamento: 2/8/2018, publicado no DJe: 10/8/2018)
Contudo, na decisão abaixo arrolada, o mesmo Tribunal acertou em sua decisão, veja o que concluiu o Desembargador, de forma assertiva:
“O ECA, ao tratar do procedimento para a apuração da prática de atos infracionais, prevê o instituto da internação provisória como medida de caráter excepcional, cujos pressupostos autorizadores são os similares aos das prisões cautelares do processo penal, quais sejam, o fumus comissi delicti e o periculum libertatis, previstos no art. 108, parágrafo único e no art. 174, in fine, ambos do ECA. O mencionado art. 108, parágrafo único, dispõe que a decisão de internação provisória do menor infrator deverá ser fundamentada e basear-se em indícios suficientes de autoria e materialidade, demonstrada a necessidade imperiosa da medida. Já o art. 174, do mesmo diploma legal, estabelece que, pela gravidade do ato infracional e a sua repercussão social, deve o adolescente permanecer internado provisoriamente para a garantia de sua segurança pessoal ou manutenção da ordem pública.”
(Acórdão 1107883, 20180020028289AGI, Relator Des. J.J. COSTA CARVALHO, 1ª Turma Criminal, data de julgamento: 5/7/2018, publicado no DJe: 11/7/2018)
Portanto, atento à aplicação mais adequada das regras para apuração do ato infracional, fase essa que precede à apresentação ao órgão do Ministério Público e/ou judicial, conjugado com princípios estabelecidos no próprio texto menorista, relacionadas às medidas aplicáveis ao adolescente, que tenha praticado ato infracional e sido apreendido em flagrante, pode-se agora estabelecer um fluxo que seria de forma objetiva, assim concatenado:
1ª fase:
I- Adolescente apreendido em flagrante de ato infracional, deve ser apresentado ao Delegado de Polícia (com atribuições);
II – O Delegado de Polícia deverá perscrutar se estão presentes os requisitos do art. 302 e seguintes do CPP, para a lavratura ou não, de procedimento para apuração do ato infracional;
2ª fase:
III – Confirmado o ato infracional e o flagrante, parte-se para a lavratura de AAF, quando o ato infracional tiver sido praticado com violência ou grave ameaça a pessoa; ou
III.I – Lavratura de BOC: ato infracional sem violência à pessoa;
3ª fase:
IV – Liberação do adolescente para o representante legal (preferencialmente); ou, em caso de “demonstrada a necessidade imperiosa da medida”, a decretação da internação provisória, em sede de delegacia de polícia, desde que presentes requisitos cautelares, previstos nos arts. 108, parágrafo único e 174, in fine do ECA, quandoentão a Autoridade Policial deverá apresentar o adolescente em até 24 horas (quando não houver entidade de atendimento no local), ao membro do parquet estadual.
III. II. EM CASO DE NÃO FLAGRANTE DE ATO INFRACIONAL, O QUE CABE AO DELEGADO DE POLÍCIA REALIZAR?
Aqui, trago a previsão do art. Art. 177 do ECA, que afirma:
“Se, afastada a hipótese de flagrante, houver indícios de participação de adolescente na prática de ato infracional, a autoridade policial encaminhará ao representante do Ministério Público relatório das investigações e demais documentos.”
Surge para a Autoridade Policial, em casos de não apreensão em flagrante de ato infracional, a obrigação de realizar investigação acerca da autoria e materialidade do referido ato, produzindo para tanto relatório final e o encaminhando ao órgão do parquet estadual, juntamente com documentos inerentes à investigação, para o prosseguimento ou não de ação socioeducativa, conforme seja o conteúdo do ato infracional apurado.
- CONSIDERAÇÕES FINAIS
A temática expressada neste artigo traz uma certa inquietude na doutrina e na jurisprudência brasileiras, haja vista, ainda hoje, persistirem discrepâncias práticas, neste ou naquele sentido, conforme restou assentado no texto.
Buscou-se aclarar a atuação do Delegado de Polícia, frente aos desafios inaugurados com o Estatuto da Criança e do Adolescente, quando contrapostos estão o ato infracional e a liberdade do adolescente, trazendo um ambiente com maior segurança jurídica para tomada de decisões, e, desta feita, favorecer que não se tenham problemas jurídicos, pelo cometimento de equívocos no dia-a-dia das delegacias de polícia.
Desta feita, restou bem delineado qual será o procedimento legal adotado pela Autoridade Policial, diante do caso em concreto, que seja mais adequado à apuração do ato infracional cometido pelo adolescente, seja com violência ou grave ameaça à pessoa, ou mesmo sem, assim como, se tal conduta admite ou não (diante da gravidade do ato e sua repercussão social, entre outros) a manutenção de sua apreensão provisória e apresentação ao órgão do parquet estadual. Deixando claro quais são as alternativas possíveis para a tomada de decisões por parte da Autoridade Policial, em sede de Delegacia de Polícia.
Referência Bibliográfica:
BARROS, Guilherme Freire de Melo. Estatuto da Criança e do Adolescente. Ed. JusPodium. 13ª ed. 2019
Costa, Adriano Sousa; e Silva, Laudelina Inácio da. Prática Policial Sistematizada. Ed. Impetus.
LEI 8069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente);
ISHIDA, Valter Kenji, Estatuto da Criança e do Adolescente. Doutrina e jurisprudência. Ed. Atlas. 2015.
MACIEL, Katia Regina Ferreira Lobo Andrade (coordenação), Curso de Direito da Criança e do Adolescente. Aspectos teóricos e práticos. Ed. Saraiva. 8ª ed. 2015.
ROSSATO, Luciano Alves; LÉPORE, Paulo Eduardo; CUNHA, Rogério Sanches. Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado. São Paulo: RT, 2011;
STF: ADI 3.446, rel. min. Gilmar Mendes;
Por Bruno Lima Barcellos:
Delegado de Polícia Judiciária Civil de Mato Grosso. Atualmente exercendo suas atividades como Delegado Plantonista. Foi Diretor-Adjunto da Academia de Polícia Judiciária Civil de Mato Grosso, durante a execução da última Academia para os Novos Delegados de Polícia do Estado de Mato Grosso. Membro do Conselho Editorial da Revista Tiradentes (Acadepol). Graduado em Direito, com especialização em Direito Penal e Processual Penal, e em Inteligência Competitiva e Desenvolvimento Regional. Mestrando na Universidade Lusófona do Porto, Portugal. Professor das disciplinas de Direito Penal, Processual Penal, Direito Constitucional e ECA. Ministrou cursos de destaque: Formação de Policiais Civis (Acadepol); Formação de Praças e Sargentos da Polícia Militar de Mato Grosso (Cefap). Atuou como coordenador dos cursos preparatórios para a carreira policial e curso preparatório para concurso público da Magistratura mato-grossense (Escola da Magistratura Mato-grossense – Emam).