MP rebate governador sobre Vara Única da Saúde: Leia Nota

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O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MATO GROSSO vem a público manifestar sua discordância das declarações do Sr. Governador do Estado questionando, fora das lides forenses, a decisão do Egrégio Superior Tribunal de Justiça que, analisando recurso de cidadão representado pela Defensoria Pública, entendeu irregular a concentração em uma Vara Judicial Única das demandas da área de saúde relativas às pessoas idosas.

O chefe do Executivo alegou, em entrevista à imprensa, que a criação da Vara Judicial Única de Saúde em Várzea Grande acabou com o que denominou de “máfia da saúde”, que desviaria, segundo número por ele apresentado, cerca de R$ 100 milhões por ano para atender as ações judiciais relacionadas ao setor da saúde pública, “aproveitando da boa vontade do Poder Judiciário para roubar o dinheiro público”. “Nós gastávamos quase R$ 200 milhões por ano com essas judicializações. Depois que a Vara foi criada, essa despesa caiu por menos da metade”, acrescentou o governador.

A Vara Judicial em referência foi instalada em 2019, na Comarca de Várzea Grande, que, desde então, é competente para apreciar as demandas da saúde direcionadas ao Estado em todo o território mato-grossense.

Na exposição de motivos, justificando a mudança proposta, o então Presidente do TJMT relatava que nas 79 comarcas do Estado tramitava significativo número de processos relativos à saúde que, concentrados em Vara Única, teriam maior dinamismo. Porém, decorrido mais de um ano, nota-se nos Relatórios de Atividades Forenses da Corregedoria-Geral de Justiça, hospedados no sítio eletrônico do TJMT, que tal meta não foi alcançada.

Em novembro de 2020, por exemplo, a 1ª Vara Especializada da Fazenda Pública de Várzea Grande (Vara da Saúde) iniciou o mês com o acervo total de 4.275 processos, mas apenas 238 foram sentenciados (40 sem julgamento do mérito e 198 com julgamento do mérito).

A Resolução nº 09-TJMT não observou que significativo número de ações judiciais ostenta no polo ativo pessoas idosas que, pela legislação em vigor, gozam de tratamento diferenciado. Tal resolução ignora outras normas legais de caráter processual e hierarquicamente superiores, que determinam que as ações versando sobre direitos de pessoas idosas devem ser julgadas e processadas no foro do seu domícilio.

Mesmo em tempos em que predominam as relações por meio digital, é imperioso reconhecer que significativa parte da clientela do SUS que promove essas demandas não tem acesso a computador e internet, violando ainda o direito ao acesso à justiça. Aliás, este foi o entendimento do relator da matéria no STJ, ministro. Herman Benjamin: “A alteração da competência para comarca distante do domicílio do autor-vítima vulnerável ou hipossuficiente traz, sim, indisputável prejuízo, ainda que o processo judicial seja eletrônico, haja vista os demandantes nem sempre disporem de computador e internet. Além disso, a distância geográfica pode comprometer a produção de provas pelo jurisdicionado, o contato com seu advogado etc. Aqui, então, assoma um dos cânones de ouro no Estado Social de Direito: o acesso à justiça para hipossuficiente ou vulnerável – portador de debilidade jurídica, econômica, técnica ou informativa, perdurável ou contingencial – deve, no verbo e na prática, ser facilitado, e não embaraçado.”

O Ministério Público de Mato Grosso questiona, em vários outros recursos também em apreciação no STJ, a criação da Vara Única de Saúde e, por isso, não pode aceitar que a matéria seja tratada com a simplicidade exteriorizada na manifestação do Sr. Governador.

Inicialmente, vale frisar que é de natureza institucional a responsabilização civil, administrativa ou penal de todas as condutas de servidores ou particulares que resultem em desvio de recursos públicos.

O nosso inconformismo com a concentração das demandas da área da saúde relacionadas às pessoas idosas em uma única Vara Judicial, está embasado no estreito cumprimento da legislação vigente. A lei determina que a pessoa idosa e a criança/adolescente tenham o direito de questionar, em seus domicílios, as dificuldades enfrentadas na busca por seus direitos. Logo, quando o Judiciário concentra nos limites da capital do Estado essas demandas, que, em sua maioria, cuidam da oferta de tratamentos ou de produtos (remédios, próteses, equipamentos etc.) integrantes dos protocolos clínicos, que por deficiências administrativas são negados aos usuários, termina dificultando o acesso dessas pessoas ao direito fundamental à saúde, assegurado pela Constituição O jurisdicionado, especialmente o idoso, tem o direito de acesso ao Judiciário em seu domicílio e não naquele onde é mais conveniente para a administração pública. Ademais, o Tribunal de Justiça promoveu essas mudanças por meio de resolução, em total desrespeito à legislação federal.

A chamada Judicialização da Saúde é, na maioria dos casos, fruto da reiterada desconformidade na execução da política pública para o setor. Em regra, o Judiciário é provocado para dirimir conflito, mas, no caso, as demandas por serviços ou produtos para garantir saúde à população decorre da incompetência administrativa do Poder Executivo, que há muito precisa se estruturar, modificando e modernizando os meios de atendimento ao cidadão.

Os gestores do Sistema Único de Saúde precisam sintonizar suas ações, visando a efetividade de atendimento ao cidadão, tratando-o como verdadeiro cliente. Também é crucial o tratamento dos contratos na área da saúde com a rede pública, filantrópica e privada nos mesmos moldes dos demais contratos públicos, inclusive com gestores específicos que possam corrigir, a tempo, eventuais desconformidades e, sobretudo, que existam cenários de composição entre a administração e o cidadão, evitando a judicialização das demandas. O Ministério Público está à disposição para participar da construção de alternativas visando a atingir esse desiderato, aliás, como sempre fez.

Vale lembrar que o CNJ recomenda e os Tribunais de Justiça nos Estados esmeram-se em adequar as suas estruturas de atendimento às demandas judiciais na área da saúde, em sintonia com as orientações técnicas e, sobretudo, sopesando os meios que evitem a litigiosidade, de forma a alcançar o objetivo almejado na demanda, em menor custo para a administração pública. Mas é insano insistir em alcançar esse objetivo, senão pela melhoria dos meios administrativos de resposta ao cidadão. O caminho é dotar toda a estrutura administrativa de capacidade de atendimento eficiente ao cidadão.

As condutas não republicanas, consistentes em desvio do dinheiro público, devem ser investigadas pelos órgãos de controle interno do Executivo e por aqueles de Controle Externo do Estado.

José Antônio Borges Pereira
Procurador-geral de Justiça do Estado de Mato Grosso

Procurador Edmilson da Costa Pereira
Titular da Procuradoria de Justiça Especializada da Cidadania e do Consumidor

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