O Pantanal abriga pelo menos 300 espécies conhecidas de peixes em seu vasto Rio Paraguai e em centenas de quilômetros de afluentes, mas só uma carrega título de realeza: o dourado (Salminus brasiliensis). Conhecido como “rei do rio” por seu comportamento de predador, por seus saltos para fora d’água e por travar embates com a vara do pescador que podem durar horas, ele ganhou, neste ano, uma proteção diferenciada dos demais: seu abate está proibido em todo o território de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.
Isso quer dizer que os pescadores podem fisgar o peixe, mas não matá-lo. Se alguém soltar a linha no rio e um dourado morder a isca, a orientação é não provocar ferimentos e devolvê-lo à natureza o quanto antes.
Não existiam evidências científicas concretas quando, em 2009, Cáceres (MT) se tornou o primeiro município a proteger o dourado em seus rios – permitindo que os pescadores apenas retirassem o peixe do anzol e o devolvessem à natureza. Mas também não faltavam impressões empíricas, segundo os moradores locais, de que o tamanho dos dourados capturados eram cada vez menores.
A sabedoria popular tem levado a melhor desde então: em 2012, o estado de Mato Grosso seguiu os passos de Cáceres; no ano seguinte, foi a vez do município de Corumbá (MS). Em janeiro de 2019, o abate do chamado “rei do rio” se tornou proibida em todo o território de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.
Foi assim que o dourado se tornou o símbolo das políticas de conservação da biodiversidade na região.
Ao contrário da cota zero, que foi recebida com críticas por diversos setores em Mato Grosso do Sul, a proibição da pesca do dourado é bem-vinda no estado. “A gente até é a favor da proibição, porque é um peixei muito bonito, é brigador”, elogia Carlos Eduardo Murad de Goes, conhecido na região de Miranda (MS) como Alemão.
Ali, a presença do peixe é sazonal, segundo ele, porque as águas do Rio Miranda são barrentas, e o dourado prefere águas limpas, onde ele pode caçar peixes menores para comer, além de ter hábitos diurnos. “É um predador visualmente orientado, que tem uma forma específica de capturar”, explica Agostinho Catella, pesquisador da Embrapa Pantanal, em Corumbá (MS).
Para acompanhar esses hábitos, muitos pescadores usam uma isca artificial, que imita um desses peixes, para tentar enganar o “rei do rio”.
Se em Miranda a espécie costuma dar as caras entre julho e setembro, a 300 km no sentido da Bolívia a aparição do dourado costuma se concentrar entre março e maio, explica o empresário de turismo. “Estava tendo só a maioria de dourado pequena, então realmente acho que essa medida foi muito boa”, diz Alemão.
Segundo Claumir Cesar Muniz, professor da Universidade Estadual de Mato Grosso (Unemat) e pesquisador do Projeto Bichos do Pantanal, do Instituto Sustentar, embora a política não tenha base científica, ela representa uma medida para proteger um dos peixes mais cobiçados pelos turistas locais.
“Felizmente a gente tem populações vigorosas estabilizadas”, explica Catella sobre o estoque de dourado na região. “Foi mais uma decisão da gestão do que um aconselhamento técnico-científico.”
Os especialistas consideram que existe sobrepesca quando aumenta o número de exemplares de uma espécie retirados do rio, principalmente analisando as guias de pesca que os pescadores entregam aos policiais ambientais.
A partir desses dados, ele diz que é possível estimar a taxa de mortalidade natural e por pesca das espécies. Segundo o pesquisador, estudos realizados na década de 2000, com metodologias diferentes, que indicaram que a única espécie que sofria de sobrepesca na época era o pacu.
Em Mato Grosso do Sul, o dourado está protegido pelo menos até 2023. Já em Mato Grosso, que já havia seguido por esse caminho em 2013, ainda não há previsão se a proteção será suspensa.
A população de Cáceres, onde essa proibição já completou uma década, garante que ela teve efeito positivo. “Hoje é nítido que aumentou a população do dourado, bem como seu tamanho e peso”
“Estava ficando escasso no Pantanal já. Mas aumentou muito, o danado, muito, muito”, afirmou Vagno Pereira Pires, que viveu e cresceu em Cáceres, e é um dos matogrossenses que conhecem quase todos os detalhes do Rio Paraguai e dos afluentes no Alto Pantanal.
Aos 22 anos, Pires tirou a carteira de pescador profissional, carreira que seguiu durante décadas, até trocar para o ramo da pesquisa – agora, aos 48, ele é o piloto de barco das expedições do Projeto Bichos do Pantanal, que promove pesquisas, educação ambiental e ações de conservação da natureza.
Segundo ele, as regras cada vez mais rígidas para o pescador profissional acabaram tornando a atividade pouco lucrativa, e o ramo do turismo e da pesquisa acaba sendo opções mais garantidas – só a diária de um piloteiro de barco é de cerca de R$ 150, por exemplo.
Catella explica que muitos pescadores profissionais viam no abate e venda do dourado uma fonte de renda, mas agora devem buscar outras alternativas.
Por outro lado, quem vive da pesca turística foi diretamente beneficiado, já que a proibição do abate aumenta as chances de os pescadores amadores conseguirem encontrar cada vez mais dourados grandes nos rios do Pantanal, e evitem sair decepcionados e com planos de pescar em outra região ou país no ano seguinte.